Com medo de perder seus privilégios como governantes, vários líderes árabes pedem ajuda aos EUA contra o Irã. O fato mostra quão dissociados esses líderes estão da opinião pública de seus países, toda ela antiestadunidense.
É espantoso verificar até que ponto chega a submissão desses líderes aos Estados Unidos, e tudo que eles estão dispostos a ceder para continuar reinando sobre os polpudos lucros que o petróleo lhes dá. Um nojo. Como descendente de árabes, deixo registrado meu repúdio a mais essa traição ao nosso povo, a mais essa demonstração de fraqueza e de ambição a todo custo.
Leia o artigo de Lamis Andoni, da Al-Jazeera, traduzido pelo Coletivo Vila Vudu.
Qatar, 29/11/2010 -- A maioria dos líderes árabes querem que os EUA os livrem do Irã, mesmo que ao preço de uma guerra contra a República Islâmica, mas não o dizem publicamente porque temem a reação da opinião pública em seus países.
Os telegramas secretos dos diplomatas dos EUA em todo o Oriente Médio, vazados no fim de semana pela organização WikiLeaks, mostram vários líderes árabes enfraquecidos e assustados, que dependem da proteção dos EUA contra a ameaça potencial de o Irã ter armas atômicas e influenciar todo o mundo árabe.
Embora a hostilidade de líderes árabes contra o Irã não seja segredo, os documentos publicados por vários jornais ocidentais mostram que, para muitos governos árabes, o Irã parece ser problema maior que Israel.
Se Israel é vista como inimigo que rouba terras árabes, mata palestinos e pode causar instabilidade na Região, o Irã é visto como país e governo capazes de mobilizar a opinião pública árabe contra seus atuais governantes.
Nos contatos com diplomatas norte-americanos, líderes árabes referem-se ao Irã como “uma serpente”, “o mal”, “um polvo cujos tentáculos têm de ser cortados” –, mas são extraordinariamente mais comedidos quando, nesses contatos diplomáticos, discute-se Israel.
Os ‘emirados’ iranianos
O medo de que o Irã consiga inflar as divisões internas e fomentar ações de resistência popular em vários países brota de dois pontos; primeiro, o papel no Irã na luta contra Israel, sobretudo pelo apoio que os iranianos dão ao Hezbollah e ao Hamas; em segundo lugar, a influência do Irã nas comunidades xiitas em vários estados do Golfo.
Como se lê nos documentos agora revelados, vários líderes árabes mostram-se inseguros e sem qualquer confiança em meios próprios, quando manifestam a preocupação de que qualquer relacionamento [ing.engajement] que os EUA estabeleçam com o Irã só fará aumentar a “ameaça iraniana” e levará a uma situação na qual os EUA acabarão obrigados a deter o Irã “custe o que custar”. O mais surpreendente é que alguns funcionários árabes parecem realmente acreditar que o custo, em termos da instabilidade regional, de uma guerra contra o Irã, poderia ser menor que o preço que alguns governos pagarão se “não o Irã não for parado imediatamente”.
“Ou borbardeiam o Irã, ou convivam com a bomba iraniana. Sanções e incentivos-cenoura nada alterarão”, lê-se num dos telegramas, citando frase de Zaid Al Rifai, presidente do Senado [da Jordânia] e pai do atual primeiro-ministro da Jordânia. Embora Rifai – o telegrama continua – entenda que um ataque militar teria “impacto catastrófico na região”, ele ao mesmo tempo entende que impedir que o Irã adquira armas nucleares implica vantagens que contrabalançam o risco de instabilidade.
Apesar de os líderes árabes mostrarem-se muito mais preocupados com um Irã nuclear do que com uma Israel nuclear, é difícil comparar as posições, porque praticamente não há qualquer manifestação de líder árabe sobre Israel nos documentos publicados até agora. Essa dissimetria levantou suspeitas no mundo árabe, de que os vazamentos visassem a pressionar os líderes árabes a alinhar-se com Israel, contra o Irã.
Fato que vários comentaristas árabes anotaram é que, embora os documentos revelem líderes árabes mais obcecados contra o Irã do que contra Israel, não há qualquer referência, em nenhum telegrama, de que algum líder árabe se tenha jamais manifestado favorável a um pacto com Israel, contra o Irã.
Seja como for, e ainda sem certeza sobre a natureza desses vazamentos, o quadro que emerge até agora é de líderes árabes fracos, a mercê dos EUA e implorando a proteção do Tio Sam.
Os documentos revelam que especialmente os líderes do Golfo temem que o Irã use sua influência sobre as massas xiitas e em apoio ao Hamás e ao Hezbollah, para estabelecer bases populares firmes em outros países árabes. Um dos líderes dos Emirados Árabes Unidos disse, conforme relato de diplomata dos EUA ao seu governo, que “o Irã está criando ‘emirados’ em todo o mundo muçulmano, inclusive no sul do Líbano e em Gaza, ‘emirados’ latentes no Kuwait, no Bahrain e na província leste da Arábia Saudita, a mãe de todos os ‘emirados’ no sul do Iraque, e agora em Saada [Iêmen]”.
Em termos gerais, é como se ninguém estivesse realmente preocupado com a possibilidade de o Irã vir a usar armas atômicas – que todos sabem que o Irã ainda não tem. – O que realmente parece assustar os líderes árabes é que a capacidade nuclear que o Irã já tem e pode continuar a acumular venha a fazer da República Islâmica “uma superpotência na região”.
O que nenhum documento mostra é a pressão que os EUA exercem sobre os governos árabes para que tomem medidas contra o Irã. Ao excluir essa informação, os documentos mostram um retrato distorcido dos EUA, que aparecem nos telegramas como se continuassem a favorecer algum “contato diplomático” [ing.‘engagement’], e só os árabes exigissem o emprego de força militar contra o Irã.
A superpotência regional
A verdade pode ser mais complexa do que os documentos vazados sugerem, porque os líderes árabes são vulneráveis à pressão norte-americana. Parece evidente – como funcionários do governo da Jordânia disseram bem claramente – que muitos dos governos árabes pró-Ocidente temem muito qualquer ‘acordo’ ou ‘entendimento’ que venha a ocorrer entre iranianos e norte-americanos, à custa de árabes aliados dos EUA. Na raiz desse sentimento há a preocupação de que os EUA acabem por aceitar o Irã como principal potência regional e que, adiante, os EUA também venham a apoiar levantes populares apoiados pelo Irã dentro de outros Estados árabes.
Estados do Golfo, como Bahrain, Kuwait e Arábia Saudita temem que suas comunidades xiitas, com apoio do Irã, levantem-se contra os respectivos monarcas governantes; e Jordânia e Egito temem que o Irã apóie a Fraternidade Muçulmana (sunita) ou que, no mínimo, apóie a radicalização de movimentos populares no mundo árabe – sobretudo, em todos os casos, porque não parece haver solução à vista para a questão palestina.
Os telegramas vazados não bastam para pintar um quadro completo, mas revelam muito claramente a distância que separa os líderes políticos e as populações, em todo o mundo árabe.
O medo de que o Irã influencie as massas é, em larga medida, resultado de prosseguir a ocupação israelense de terras palestinas, e de não se ver qualquer avanço nas negociações entre árabes e israelenses. O apoio do Irã ao Hamás e, muito mais, ao Hezbollah – único grupo de resistência no mundo árabe que conseguiu forçar a retirada de israelenses que ocupavam terra árabe – põe vários governantes árabes em posição difícil, porque expõe o quanto são impotentes no confronto direto com Israel.
O que se lê agora nos documentos diplomáticos vazados por WikiLeaks enfraquecem ainda mais a imagem de líderes árabes ante a opinião pública no mundo árabe, o que torna ainda mais difícil para esses líderes pregarem publicamente a ideia de ataque militar ao Irã. Apesar de alguns dos medos que os líderes árabes manifestam aparecerem também em alguns segmentos da população, nenhum alto funcionário ou governante de país árabe, hoje, se atreveria a apontar publicamente o Irã, não Israel, como inimigo. Talvez o fizessem, sim, mas por pressão dos EUA e, mesmo assim, só em reunião secreta com diplomatas-espiões dos EUA e longe dos ouvidos da opinião pública.
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