Que a mídia corporativa, em especial a dos EUA, manipula informações para enganar seus leitores e levá-los a aceitar as decisões das altas cúpulas, não é segredo para ninguém. Mas a TIME desta semana exagerou na dose ao colocar na capa a foto da afegã Aisha, sem uma asa do nariz, a fim de defender a invasão dos EUA no Afeganistão, numa guerra que já dura 10 anos.
Huda Jawad, escritor e colaborador da Islamic Insights, publicação semanal dos EUA, faz a crítica à TIME. Recebi o artigo via Frontlines of Revolucionary Struggle agora há pouco. Os destaques, em negrito, são meus.
Com "libertadores" como estes, quem precisa de opressores?
A revista TIME deve estar enfrentando um grave caso de amnésia, a julgar pela capa da edição desta semana, que afirma: "O que aconteceria se deixássemos o Afeganistão". Na melhor das hipóteses, trata-se de jornalismo maldoso e irresponsável; na pior das hipóteses, é uma das peças mais flagrantes de propaganda pró-guerra em anos. O mundo deve às mulheres do Afeganistão uma resposta honesta sobre por que permite, de modo apático, que sua [das mulheres afegãs] condição se deteriore do horrível ao simplesmente indescritível. Em vez disso, a TIME de bom grado engana os leitores, levando-os a pensar que o estado de Aisha - a jovem retratada na capa - é resultado de uma ação dos talibãs há 10 anos. Não é. O rosto cheio de cicatrizes de Aisha é um reflexo de cortar o coração da situação das mulheres afegãs hoje, em 2010, e sob a absurda afirmação da “democracia” e da presença de milhares de militares dos EUA e da OTAN no país.
Aisha foi atacada pelo Talibã no ano passado, no momento em que milhares de tropas estrangeiras circulavam por todo o Afeganistão sob o pretexto de libertá-lo. A TIME repete o mantra indesculpável, e já redundante, utilizado pelo Departamento de Defesa [dos EUA] e de quase todos os políticos neoconservadores: “estamos no Afeganistão para salvar as mulheres”. Aqui está o problema: as tropas dos EUA estão no país e o dominam há 10 anos, mas a violência contra as mulheres afegãs cresce em vez de diminuir. As ações do Talibã são reprováveis e estão muito distantes [daquilo que prega] a doutrina islâmica. No entanto, a TIME e Katie Couric (que deu um aval humilhante à capa e ao êxito do artigo) parecem ter a intenção de alimentar o fogo da islamofobia ao usar essas imagens.
A mídia nos ensina incessantemente que os muçulmanos – em particular os do gênero masculino - são cruéis e comportam-se de maneira fulminante para com as mulheres. No caso dos talibãs isso é verdade, e é um insulto ao Islã que personagens tão vis aleguem aderir a essa crença. No entanto, igualmente insultuosa é a noção de que os EUA estão no Afeganistão para proteger as mulheres [das ações] do Talibã, grupo criado e financiado pelos Estados Unidos durante a guerra fria [para lutar] contra a extinta União Soviética. Esse absurdo é usado para propagar que os EUA saem de casa para libertar as mulheres muçulmanas. Trata-se de uma perda de tempo, pois ninguém explica por que os EUA não enviam seus [caças] F-16 à Arábia Saudita para libertar as mulheres de lá das cadeias da opressão, da ameaça de condenação por crimes contra a honra e da obrigação de casar ainda crianças. Os Estados Unidos não têm escrúpulos em apoiar a Arábia Saudita com bilhões de dólares em ajuda militar por ano - além de exportar uísque e roupas íntimas - a fim de manter o status quo do Oriente Médio a favor dos interesses estadunidenses.
Os mesmos misóginos senhores da guerra e traficantes de drogas, responsáveis pelo assassinato em massa no Afeganistão, estão agora no governo graças ao apoio dos EUA, e se deleitam. Talvez a única diferença esteja nos ternos que vestem e nas máscaras da assim chamada “democracia”. Existem atualmente três grandes forças capazes de determinar o destino das mulheres afegãs: o governo instalado pelos EUA, a insurgência talibã e os próprios EUA. Eis um pensamento selvagem: nas reuniões altamente secretas desses três grupos “altruístas”, a última coisa com que eles se ocupam não é se à pequena Fátima ou a Aisha é permitido ir à escola sem que corram o risco de ter ácido jogado no rosto. Os direitos das mulheres torna-se um ponto de ruptura somente quando o governo afegão e os EUA fazem concessões indignas à insurgência talibã em relação aos direitos femininos, a fim de manter um cessar-fogo com os rebeldes ou para obter mais influência política.
Os Estados Unidos demonstram tanta preocupação com a situação das mulheres afegãs que continuam a assegurar apoio a Hamid Karzai [presidente do Afeganistão], considerando "legítimas" as últimas eleições, apesar da fraude aparente e da intimidação aos eleitores. Além de abrir negociações com os talibãs e fazer concessões a eles, Karzai também ganha concessões do Hezb-i-Islami (Partido Islâmico), liderado por Gulbuddin Hekmatya - uma facção cuja atitude em relação às mulheres rivaliza, em crueldade e opressão, com o Talibã. Existe outro mito promovido pelas autoridades afegãs e pelos decisores políticos dos EUA: o de que existe um Talibã moderado. Trata-se, na verdade, do mesmo grupo de terroristas responsável por tornar a vida um inferno absoluto para milhões de mulheres afegãs, mas com mais poder e dinheiro .
Os números vendidos para a mídia pintam um quadro otimista da situação das mulheres no Afeganistão. Na realidade, essas estatísticas são uma piada cruel e não fazem nada para melhorar a situação social feminina. Dez anos e 300 bilhões de dólares depois, os Estados Unidos têm feito pouco para capacitar as mulheres de um Afeganistão devastado pela guerra. Na província de Uruzgan existem oficialmente 220 escolas, mas apenas 21 delas funcionam. De acordo com a pesquisadora Rachel Reid, [sediada] em Cabul, [em depoimento] para a Human Rights Watch, "apenas quatro por cento das moças em idade de frequentar a escola secundária atingem a 10ª. série". Em vez de levar a democracia e a igualdade social para o Afeganistão, os EUA ajudou o país a transformar-se em produtor mundial de ópio -- 93% do ópio do mundo é produzido lá. Isso é quase chocante se considerarmos que o irmão de Hamid Karzai é o maior traficante da droga no Afeganistão. Enquanto os senhores da guerra lucram com o neocolonialismo imposto pela ocupação, o mais recente Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas classifica Afeganistão em 181º. lugar entre 182 países. Cerca de vinte milhões de afegãos vivem com menos de 2 dólares por dia. A situação levou muitas mães pobres a considerar a venda dos filhos, dada sua incapacidade de alimentá-los.
Só no Afeganistão estupradores de crianças e criminosos de guerra são autorizados a negociar com o chamado “governo democrático”, com o apoio dos EUA. Tome-se como exemplo a ascensão do poder político de Mohammed Mohaqiq [fundador e chefe do Hezb-e Wahdat, Partido da Unidade Islâmica]. Em 2001 e 2002, o partido deu início a uma orientação sistemática aos pashtuns [maior grupo étnico do Afeganistão] por causa de seus laços étnicos com o Talibã. Como resultado, aldeias inteiras de civis foram atacadas e jovens foram seqüestrados a caminho da escola pelos bandidos armados de Mohaqiq. Em 2002, Mohaqiq conseguiu ser vice-ministro do Planejamento do governo "democrático" do Afeganistão. Em 2007, ele planejou a lei de anistia afegã, que concedeu perdão e proteção total aos senhores da guerra do Talibã. A lei não foi aprovada em 2007, mas, durante as eleições de 2009 - um evento que a história pintará para sempre como o paradigma da corrupção -, Mohaqiq deu seu apoio a Karzai, que lhe prometeu um cargo no novo governo. Karzai colocou em vigor a lei de anistia do Afeganistão em 2010, a fim de imunizar Mohaqiq e seus pares pelos crimes cometidos contra as mulheres.
A retórica de "Vamos salvar as mulheres afegãs" é hipócrita, considerando que os EUA e a OTAN ficaram de braços cruzados enquanto Karzai e os senhores da guerra montavam o maior esquema de fraude eleitoral da história moderna. O artigo da TIME especula sobre o destino das mulheres afegãs, uma vez que os EUA pararam de enviar as embalagens de ajuda humanitária na forma de ataques realizados por drones [aviões não tripulados] sobre populações civis e festas de casamento, entre outros alvos “perigosos”. No entanto, porque o Talibã não é mais inimigo do exército dos EUA – que o legitimou e até mesmo entrou em negociações secretas com o grupo – que tal bombardear a população civil, matando-a? No Afeganistão, a presença de um exército estrangeiro significou bombardeios indiscriminados por parte das “forças da liberdade”, além de massacres de civis pelas tropas dos EUA e de corrupção pública generalizada por lacaios instalados pelos EUA.
É um pecado imperdoável a mídia e os decisores políticos estadunidense continuarem alegando descaradamente que estão no Afeganistão para libertar sua população feminina.
Talvez a celebração de acordos faça sentido para os EUA e para o Talibã, considerando que ambos têm o dom de matar civis inocentes no Afeganistão e em outros lugares. Ao perguntar o que aconteceria se ficássemos no Afeganistão, a TIME alinha-se à mídia de extrema direita, fanática e pró-guerra, jogando seu peso na destruição contínua da infraestrutura social e civil do Afeganistão. Os EUA devem às mulheres afegãs ao menos o cessar de insultá-las, afirmando que tornar piores suas condições de vida significa "libertá-las". Essas mulheres já sofreram o bastante. Não vamos transformá-las em “garotas da capa” para justificar mais ataques aéreos em zonas civis.
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